A PEC da Simplificação Tributária e o Monstro de Cinco Cabeças

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A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) me convidou para dar palestra na Audiência Pública realizada dia 22/05/2019, com o fim de discutir a admissibilidade da Reforma Tributária disposta na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2019.

O propósito deste artigo é relatar, de forma prática e objetiva, a manifestação que fiz quanto ao assunto nessa audiência, que antecedeu a votação da matéria no âmbito da CCJ.

O tema é polêmico. Aliás, até mesmo o “nome de batismo” – aquele usado pelos deputados e imprensa – para referir-se à PEC, é polêmico: “PEC da Reforma Tributária”.

Examinando o texto da PEC, não vejo “reforma”, propriamente. Esta expressão tem acompanhado todas as inúmeras tentativas frustradas de promover maiores alterações no sistema tributário nacional, desde a Constituição de 1988. Nem vamos falar da etimologia da expressão (dar nova forma, aprimorar) pois, entre nós, Reforma Tributária teve sempre a conotação de reduzir carga tributária; e isso ficou na década passada…

Agora, há uma conscientização de que é ilusório esperar redução de tributos dessa maneira. O que se clama é pela simplificação do sistema, que se tornou ininteligível, insustentável, obscuro e porque não dizer: imoral (na acepção jurídica da palavra mesmo). Nessa medida, o novo tributo proposto (IBS – imposto sobre bens e serviços) na verdade apenas substitui outros 05 existentes (ICMS, IPI, PIS, COFINS e ISS) sem reduzir a arrecadação dos entes destinatários originais. Assim, essa proposta deveria ser chamada sim de “PEC da Simplificação Tributária.”

Pois bem. A audiência pública durou duas sessões da CCJ (dois dias). No primeiro dia, o que pude perceber foram discussões que sequer tangenciaram o propósito da audiência: a admissibilidade da PEC. Alguns dos palestrantes convidados limitaram-se a contextualizar a Proposta (o que apesar de fugir ao escopo dos trabalhos, foi útil) mas a maioria ingressou no mérito do texto… no sentido de discutir se, para o interesse de cada um – ou de seus representados – a proposta era interessante ou não. E para todos estes, a proposta era ruim.

Os deputados, levados por esta onda, também questionaram os palestrantes quanto ao mérito.
Em meados do segundo dia, porém, o rumo da discussão mudou e passou a cuidar da admissibilidade em si da Proposta legislativa.

A análise está concentrada no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição1, sendo relevantes para a PEC os incisos que tratam do chamado “pacto federativo” e dos “direitos e garantias individuais”.

Pacto federativo porque com a extinção do Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto sobre Serviços (ISS) elimina-se tributo de competência privativa dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Com isto, segundo alguns, eles perdem sua principal fonte de arrecadação com a substituição por outro tributo a ser criado por Lei Complementar (não mais por Lei Ordinária Estadual/municipal/distrital).

Garantias Individuais porque, também segundo alguns, a extinção do ICMS e do IPI acarreta o desaparecimento do princípio da seletividade2, que garante a tributação menor de bens e produtos essenciais ao cidadão e maior tributação para os supérfluos, na tentativa de tornar “possível” concretizar tributos sobre o consumo ao princípio da capacidade contributiva3.

Entendo que não há, em absoluto, inconstitucionalidade.

Inclusive, essa foi a posição ao final acatada pela grande maioria dos deputados presentes na CCJ ao final da votação, pela admissibilidade (inclusive partidos de oposição).

Quanto à questão federativa, é preciso olhar a constituição de forma pragmática. Digo isso pois apesar dos Estados e Municípios terem competência para legislar privativamente, isso não necessariamente lhes confere autonomia financeira… lembrando que sem autonomia financeira, não há autonomia federativa. Lembrei do filho que sai de casa para morar sozinho e continua recebendo mesada dos pais. Há uma aparente autonomia apenas.

O ISS tem lei complementar que limita o exercício da competência dos municípios4. Veja, por exemplo, o limite de alíquotas entre 2 e 5 %, ou a lista de serviços, que é taxativa. Ainda assim o que é de competência dos municípios-metrópole tem sido questionado pelo município vizinho, quando o tema é o local da prestação de serviços versus local da sede do estabelecimento, para fins de recolhimento do tributo… discussão sem fim até hoje.

Em relação ao ICMS a questão é muito pior… Quase nada é efetivamente de competência dos Estados. A Lei complementar do ICMS e até mesmo a Constituição no seu artigo 155 estabelece um sem-número de regras a serem observadas pelos Estados. Apenas para citar um exemplo, temos a impossibilidade de concessão de benefícios ou incentivos fiscais sem convênio prévio no âmbito do CONFAZ (único órgão colegiado de que se tem notícia cuja decisão precisa ser unânime para ter eficácia). Os militantes na área

1 Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.
2 Artigos 153 e 155 da CF.
3 Artigo 145 da CF.
4 LC 116/2003

desse imposto bem sabem o significado da expressão “guerra fiscal” gerada em torno do tema.
A conclusão inexorável é que os Estados e Municípios não têm concretamente autonomia para cobrar esses tributos. O IBS, ao compartilhar a competência, dar liberdade irrestrita no estabelecimento de alíquotas e por fim às isenções, devolve a autonomia que estes Entes foram perdendo gradativamente desde a Constituição de 1988.

Um alerta ao Tributaristas que não saíram do século XX: o formalismo não resolve mais os problemas concretos!
Sob o aspecto formal, “perder” um tributo é “perder” autonomia. Mas sob o aspecto material: “ter” um tributo para chamar de seu, não garante mais (e já faz tempo) a autonomia constitucional que se pretende preservar no artigo 60 da Constituição.

Outro tema esquecido pelos críticos do IBS é que a União (tida a meu ver agora, injustamente, como a vilã centralizadora) perde 03 tributos de uma vez. Dentre eles, duas contribuições que, como é notório, não estão sujeitas ao reparte com Estados e Municípios. Ora, agora os Estados e municípios participarão da receita do IBS, que passará a ter na sua base de cálculo o que será o resultado da arrecadação do PIS e da Cofins.

É preciso observar que a PEC da Simplificação Tributária inova ao estabelecer a competência do IBS. A doutrina talvez, ao tentar classificá-lo, dirá que se trata de tributo de competência comum, semelhante às taxas e contribuições de melhoria. Veja que o IBS é inserido no artigo 152 (A) da Constituição. Se o tributo fosse federal (como alguns chegaram a sustentar) estaria previsto no artigo 153. Mesmo abstraindo a questão topográfica, a competência compartilhada (ou comum) advém do simples e explicito fato de que a PEC propõe que a sujeição passiva seja compartilhada entre União, Estados e Distrito Federal, por meio de um Comitê Gestor – inspirado na ideia do regime do SIMPLES NACIONAL.

Ademais, sendo pragmático novamente, nunca vi reclamação do repasse feito para os Estados e Municípios conveniados ao SIMPLES (!!) E porque haveria problema agora com o IBS? A proposta, a meu ver, não só deve ser admitida (como de fato foi – por não ferir o pacto federativo), como garante e até amplia a efetiva autonomia desses Entes, na medida em que deixa de lado uma hipocrisia vigente até agora sobre uma pseudo-autonomia do ICMS e do ISS.

Finalmente, quanto às garantias individuais consubstanciadas no princípio da seletividade (mandatório ao IPI e facultativo para o ICMS) a proposta estabelece a criação dos impostos seletivos, que contém o mesmo comando constitucional vigente, ou seja: os produtos/mercadorias supérfluos devem ter alíquotas maiores que as normais e, consequentemente, os essenciais terão alíquotas menores. Além disso, considerando que a proposta elimina as isenções do âmbito do IBS, os produtos essenciais teriam sua respectiva tributação uniformizada, o que atende princípio fundante do sistema tributário: o da igualdade!

Em conclusão, entendi por ocasião de um primeiro estudo destinado à palestra no Congresso, que a PEC como está não fere regra constitucional alguma e quanto mais escuto os críticos, mais me convenço de sua constitucionalidade. Esta é típica proposta “século XXI” e lamento que muitos ainda estejam com os pés enraizados no século passado para interpretar este projeto… Obviamente que, no mérito, está sujeita a críticas e ajustes e a Lei complementar virá justamente possibilitar tal calibração… mas o nível das discussões doutrinárias será mais elevado na medida que olhemos para o futuro. Para o passado, apenas quando não quisermos repetir velhos erros. E o velho erro mais evidente é o monstro de 05 cabeças que os tributos a serem extintos com a PEC se tornaram.
Demetrius Nichele Macei – Professor de Mestrado e Doutorado do Unicuritiba

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