Empresas familiares: sempre um drama?

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Uma das maiores virtudes da sétima arte (ou cinema, como preferir) é a capacidade de retratar com grande riqueza de detalhes os acontecimentos da sociedade, seja no âmbito político, corporativo ou familiar, apenas para citar alguns dos diversos ecossistemas em que as relações humanas se desenvolvem. No filme “House of Gucci” (ou Casa Gucci), que conta com estrelado elenco liderado por Al Pacino e Lady Gaga, foi retratado em forma de drama (com boa dose de comédia em muitos momentos) a ascensão e o declínio da Família Gucci, que criou um império da moda com o mesmo nome e presença global que até hoje é referência em luxo, qualidade e design.

A saga da família Gucci também está retratada no livro “Family Wars: Classic conflicts in family business and how to deal with them”, de autoria de Grant Gordon e Nigel Nicholson, publicado originalmente em 2008. O livro analisa 24 famílias empresárias e os conflitos envolvendo seus membros na gestão dos negócios e do patrimônio familiar construído ao longo de gerações, e a última família empresária retratada é justamente a Gucci.

Caso o(a) leitor(a) deste artigo não tenha assistido o citado filme ou lido a referida publicação, fica aqui o alerta de “spoilers”. Em ambas as obras a (falta de) governança corporativa e familiar é o grande pano de fundo do relato de um drama familiar recheado de personagens complexos com temperamentos, visões e ambições totalmente distintas, embora a prosperidade da família seja um objetivo comum que os uniu em muitos momentos.

O início da jornada empresarial da família Gucci nos remete à cidade de Florença, na Itália, na segunda década do século XX, quando Guccio Gucci, filho de artesãos produtores de chapéus de palha, decide abrir (com suas economias e apoio de um investidor) uma loja para comercialização de artigos de couro de produção própria e de outros artigos de vestuário importados da Alemanha e Inglaterra. Guccio faleceu em 1953, quando o seu filho Aldo, já envolvido na gestão da empresa desde 1925, assumiu a condução dos negócios.

Durante o reinado de Aldo no comando da Gucci a empresa teve grande crescimento, tanto em termos financeiros quanto mercadológicos, passando a explorar também o mercado asiático e a comercializar novos produtos como bolsas e perfumes. No entanto, verificou-se que Aldo, de perfil centralizador e autoritário, não tinha a mesma habilidade de Guccio na preparação e envolvimento dos membros da família na gestão da empresa, dando origem a diversos conflitos que foram determinantes no desenrolar da trajetória da sociedade, culminando na venda da participação societária de Aldo para investidores trazidos por Maurizio Gucci, seu sobrinho, em 1989 (a Investcorp).

O ápice do declínio da família Gucci ocorre em 1995, quando Maurizio, aos 47 anos, é assassinado a mando de sua ex-esposa. Porém, essa tragédia ocorreu após Maurizio ter vendido para a Investcorp a parcela remanescente da Gucci que ainda era de sua titularidade (o restante do capital já era detido por tais investidores). À época da venda, a Gucci estava afundada em dívidas e com a imagem arranhada por um escândalo corporativo envolvendo elisão fiscal.

O relato dos Gucci traz uma reflexão: será que as relações familiares no âmbito da empresa são necessariamente recheadas de dramas, conflitos e conspirações?

O que o estudo de diversos casos revela é que existe um elemento que é essencial para a pacificação das relações familiares e a prosperidade e longevidade das empresas familiares: a governança.

No âmbito da família, a governança pode ser instituída, dentre outras formas, mediante a criação de regras para a gestão e usufruto do patrimônio familiar e acompanhamento de sua evolução, assim como o estabelecimento de objetivos comuns e a definição de iniciativas para capacitação dos membros da família, seja para atuar na empresa familiar ou em outros negócios.

No âmbito da empresa familiar a governança se faz presente mediante a segregação dos ativos e recursos de uso da família daqueles utilizados no desenvolvimento das atividades empresariais, a definição de regras para a participação de membros da família na gestão da empresa (incluindo a capacitação, avaliação de desempenho e idade máxima), instituição de política de distribuição de lucros, auditoria independente das demonstrações financeiras e criação de fóruns distintos para discussão dos temas estratégicos e dos temas operacionais, apenas para citar algumas das medidas que podem ser adotadas visando a longevidade da empresa e a harmonia nas relações entre os stakeholders envolvidos.

No caso da Família Gucci o que ocorreu foi exatamente a total falta de governança, manifestada pelo planejamento precário da transição da gestão do negócio da 2ª para a 3ª geração, utilização dos recursos da empresa para aquisição de luxuosos ativos de uso pessoal dos sócios (confusão patrimonial), controles financeiros e fiscais falhos, inexistência de regras de não competição para os membros da família e de procedimentos para o envolvimento dos cônjuges dos sócios na gestão dos negócios. O resultado não poderia ser outro: um drama digno de ser retratado em obras artísticas e literárias.

Embora as relações societárias envolvendo as empresas familiares possam ser complexas, sobretudo quando a quantidade de pessoas e gerações envolvidas aumenta, a adoção das boas práticas de governança em diversas empresas familiares, dos mais variados portes, segmentos e regiões, tem demonstrado que pode ser um elemento extremamente eficaz na redução do volume de drama envolvido, gerando harmonia, prosperidade e longevidade para a empresa familiar e a família empresária. O final feliz nesse caso é a perenidade das relações societárias e familiares.

Por Gustavo Pires, Head de M&A e Governança do Grupo Valore Elbrus e membro do Comitê de Tributário e Empresarial do IBEF-PR.

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